segunda-feira, 3 de maio de 2010

Uma Temporada no Inferno - Rimbaud



Noite de Inferno
Bebi um grande gole de veneno. - Três vezes bem-dito o conselho
que até mim chegou! Abrasam-se-me as entranhas. A violência do
veneno convulsiona-me os membros, desfigura-me, atira-me ao solo.
Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a condenação
eterna! Olhai como o fogo cresce. Queimo como devo queimar! Sai,
demônio!
Havia entrevisto a conversão ao bem e à felicidade, a salvação.
Posso descrever a visão? O ar do inferno não tolera hinos! Eram
milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual, a
força e a paz, as nobres ambições, que sei eu?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! - Se a condenação é eterna! Um homem que quer
mutilar-se está condenado, não é assim? Acredito-me no inferno,
logo estou nele. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo de meu
batismo. Pais, fizestes a minha desgraça e a vossa! Pobre inocente! -
O inferno nada pode contra os pagãos. - É a vida. Mais tarde, as
delícias da condenação serão mais profundas. Um crime, depressa,
que as leis humanas me precipitem no nada.
Cala-te, mas cala-te!... Esta é a vergonha, esta a repreensão: Satã que
diz que o fogo é ignóbil, que minha cólera é terrivelmente louca. -
Chega!... Segredam-me erros, magias, falsos perfumes, músicas
pueris. - E dizer-se que possuo a verdade, que vejo a justiça: tenho
um juízo são e firme, estou pronto para a perfeição... Orgulho. –
Seca-me a pele da cabeça. Piedade! Senhor, eu tenho medo. Tenho
sede, tanta sede! Ah! a infância, a erva, a chuva, o lago sobre as
pedras, a claridade da lua quando o campanário tocava meia-noite...
O diabo está no campanário, a esta hora. Maria! Virgem Santa!... -
Horror de minha idiotice.
Lá longe, não há almas honestas que me desejem o bem?... Vinde...
Tenho um travesseiro sobre a boca, não me ouvem, são fantasmas.
A1ém disso, que ninguém se aproxime. Cheiro a queimado, é certo.
As alucinaç5es são inumeráveis. É a que sempre tive: nenhuma fé na
história, esquecimento dos princípios. Calar-me-ei; poetas e
visionários sentiriam ciúmes. Sou mil vezes mais rico, sejamos
avaros como o mar.
Ah! o relógio da vida parou neste instante. Já não estou no mundo. -
A teologia é séria, o inferno está sem dúvida em baixo - e o céu no
alto. - Êxtase, pesadelo, sonho em meio a um ninho de labaredas.
Quanta malícia na atenção no campo... Satã, Ferdinando, corre com
os grãos selvagens... Jesus caminha sobre sarças ardentes, sem
dobrá-las... Jesus caminhava sobre as águas revoltas. A lanterna nolo
mostrou de pé, branco e as tranças negras, sobre uma onda de
esmeralda...
Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais,
morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre
em fantasmagorias.
Escutai!
Possuo todos os talentos. - Aqui não há nada e há alguém: não
quisera desperdiçar o meu tesouro. - Desejais que eu desapareça, que
mergulhe à procura do anel? Desejais? Fabricarei ouro, remédios.
Confiai em mim, a fé conforta, guia, cura. Vinde todos, - até as
criancinhas, - para que vos console, para que vos prodigue o seu
coração. - O coração maravilhoso! - Pobres homens, trabalhadores!
Não peço. orações; serei feliz apenas com vossa confiança.
- E pensemos em mim. Isto me faz ter raras saudades do mundo.
Minha vida foi somente doces loucuras, é lamentável.
Bah! façamos todas as caretas imagináveis.
Decididamente, estamos fora do mundo. Já não há ruídos.
Desapareceu-me o tato. Ah! meu castelo, minha Saxônia, meu
bosque de salgueiros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias ...
Estou exausto!
Deveria ter o meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, - e
o inferno da preguiça; um concerto de infernos.
Morro. de cansaço. É o túmulo, vou para os vermes, horror de
horrores! Satã, farsante, queres disso1ver-me com teus feitiços?
Exijo. Exijo! um golpe de tridente, uma gota de fogo.
Ah, sair de novo para a vida! Contemplar nossos aleijões! E esse
veneno, esse beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade
do mundo! Deus meu, piedade, esconde-me, estou doente! - Estou
escondido e ao mesmo tempo não o estou.
É o fogo que se 1evanta com o seu condenado.
Delírios
I
Virgem louca
O esposo infernal
Ouçamos a confissão de um Companheiro do inferno:
"Ó divino Esposo, meu Senhor, não repilas a confissão da mais
triste de tuas servas. Estou perdida. Estou bêbada. Estou impura.
Que vida!"
"Perdão, divino Senhor, perdão! Ah! perdão! Quantas lágrimas! E
quantas lágrimas ainda espero!"
"Mais tarde, conhecerei o divino Esposo!
Nasci submissa a Ele! - O outro pode bater-me agora!"
"No momento, estou no fundo do mundo, ó minhas amigas!.. não,
não sois minhas amigas... Jamais delírios nem torturas semelhantes...
É idiota:"
"Ah! sofro, grito. Sofro de verdade. Porém tudo me é permitido,
carregada de desprezo dos mais desprezíveis corações".
"Enfim, façamos esta confidência, com a reserva de repeti-la vinte
vezes ainda, - tão morta, tão insignificante!"
"Sou escrava do Esposo infernal, aquele que perdeu as virgens
loucas. É esse demônio mesmo. Não é um espectro, não é um
fantasma, Mas a mim, que perdi a sabedoria, que estou condenada e
morta no mundo, - não me matarão! Como vo-lo descrever! Já nem
mesmo sei falar. Estou de luto, choro, tenho medo. Um pouco de ar,
Senhor, se assim o desejas!"
"Estou viúva...- Estava viúva...- Sim, fui muito honesta antigamente
e não nasci para tornar-me esqueleto!... - Ele era quase uma
criança... Seduziram-me as suas misteriosas delicadezas. Esqueci
todo o meu dever humano para segui-lo. Que vida! A verdadeira
vida está ausente. Não estamos no mundo. Vou aonde vai ele, é
preciso. E com freqüência ele se encoleriza contra mim, contra mim,
a pobre alma. O Demônio! - É um demônio, vós o sabeis, não é
um homem".
"Ele diz: "Não amo as mulheres: sabemos que o amor está por ser
reinventado. Já não podem desejar senão uma posição segura.
Alcançada, o coração e a beleza são postos à margem: não resta
senão álgido desdém, o alimento do casamento, hoje, Ou então vejo
mulheres, com os sinais da felicidade, mulheres das quais eu poderia
fazer boas amigas, devoradas por brutos desde o primeiro momento
sensíveis como fogueiras"...
"Ouço-o fazer da infâmia uma glória, da crueldade um encanto". Eu
sou da raça antiga: meus pais eram escandinavos: traspassavam-se
as costelas, bebiam o próprio sangue. - Ferirei todo o meu corpo,
tatuar-me-ei, quero ser horrível como um mongol: verás, urrarei em
plena rua. Quero ficar louco de raiva. Nunca me mostres jóias:
arrastar-me-ia e me contorceria sobre a relva. Minha riqueza,
quisera-a toda enodoada de sangue. Nunca hei de trabalhar..." Certas
noites, seu demônio apoderando-se de mim, nós rodávamos, eu
lutava com ele! - Às noites, freqüentemente bêbado, escondia-se nas
ruas ou nas casas para assustar-me mortalmente. - "Cortar-me-ão na
verdade o pescoço; será asqueroso". Oh! esses dias em que ele quer
caminhar com aspecto de crime!"
"Algumas vezes fala, numa espécie de patoá enternecido que traz o
arrependimento, dos infelizes que certamente existem, dos trabalhos
penosos, das partidas que despedaçam os corações. Nas tascas em
que nos embriagávamos, punha-se a chorar ao pensar nos que nos
rodeiam, rebanho da miséria. Erguia os bêbados nas negras ruas.
Tinha piedade de uma mãe perversa para com os filhinhos. -
Portava-se com uma graça de menina, a caminho do catecismo. -
Afetava tudo saber: comércio, arte, medicina. - Eu o seguia, era
preciso!
"Eu via toda a decoração de que, em espírito, ele se rodeava;
vestidos, panos, móveis: eu lhe emprestava armas, outro rosto. Eu
via tudo o que lhe interessava, como ele quisera criá-lo para si
próprio. Quando me parecia que seu espírito estava inerte, eu o
acompanha, por mim mesmo, em ações estranhas e complicadas,
longe, boas ou más: estava perfeitamente segura de que nunca
penetraria em seus mundo. Ao lado de seu corpo amado adormecido,
quantas horas da noite não velei, perguntando-me porque tanto
porfiava ele em evadir-se da realidade. Jamais homem algum fez tal
voto. Advertia-me, - sem temer por ele - de que bem podia ser um
grave perigo para a sociedade. - Acaso possuirá segredos para
transformar a vida? Não, não faz mais que procurá-los, respondia a
mim mesmo. Sua caridade está enfeitiçada e retém-me prisioneira.
Nenhuma outra alma a não ser a minha teria bastante força - força de
desespero! - para suportá-la, para ser protegida e amada por ele.
Além disso, não o imaginava com outra alma: vê-se seu Anjo, nunca
o Anjo de nenhum outro, creio eu. Eu habitava em sua alma como
em um palácio que se desocupou para não se ver nele uma pessoa
menos nobre que vós: eis tudo. Ai! eu dependia por completo dele.
Mas, que queria ele de minha existência opaca e covarde? Não me
tornava melhor, se não me fazia morrer! Tristemente despeitada, eu
lhe disse algumas vezes:
"Compreendo-te". Ele dava de ombros.
"Assim, como renovasse sem cessar meu sofrimento, e sentindo-me
a meus próprios olhos ainda mais perdida, - como diante de todos os
olhos que quisessem contemplar-me se não estivesse condenada para
sempre ao esquecimento de todos - aumentava cada vez mais minha
fome de sua bondade. Seus beijos e abraços eram um céu, um
sombrio céu no qual eu entrava, e no qual desejaria que me
abandonasse, pobre, surda, muda, cega. Eu começava a habituar-me.
Considerava que éramos duas crianças boas; livres para passear no
Paraíso da tristeza. Compreendíamo-nos. Comovidos, trabalhávamos
juntos. Mas, após uma penetrante carícia, ele observava: Quando eu
me for, que estranho te parecerá tudo porque tens passado. Quando
já não tenhas meus braços em torno de teu pescoço, mas meu
coração para reclinar-te, nem esta boca sobre teus olhos. Porque um
dia terei que partir para muito longe. Além disso, tenho que ajudar a
outros: é meu dever. Ainda que isso não seja lá muito agradável...
amada criatura". Imediatamente eu o imaginava distante, e me sentia
presa de vertigem, relegada à mais espantosa das sombras: a morte.
Obrigava-o prometer que não me abandonaria. Vinte vezes me fez
essa promessa de amante. Era tão frívolo quanto eu, quando lhe
dizia:
"Compreendo-te".
"Ah! Jamais tive ciúmes dele. Não me abandonarás, creio. Que
faria? Não possui conhecimentos, nunca trabalhará. Quer viver
sonâmbulo. Bastaria a sua bondade e caridade para dar-lhe direito no
mundo real? Por um instante, esqueço o estado lastimoso em que
caí: ele far-me-á forte, viajaremos, caçaremos nos desertos,
dormiremos sobre o empedrado de cidades desconhecidas, sem
auxílios, sem queixa. Ou ao despertar, as leis e os costumes terão
mudado, - graças a seu mágico poder; ou o mundo, permanecendo
igual, abandonar-me-á a meus desejos, a minhas alegrias, a minhas
indolências. Oh! Dar-me-ás a vida de aventuras que existe nos livros
infantis a fim de me recompensar de quanto tenho sofrido? Não
posso. Ignoro meu ideal. Declara-me que sente remorsos, que tem
esperanças: isto não deve importar-me. Fala com Deus? Talvez
devesse eu mesma dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo
abismo, e não sei mais rezar".
"Se me explicasse suas tristezas, compreende-las-ia melhor que suas
zombarias? Ele me ataca, durante horas a fio me humilha por tudo
que me tem comovido no mundo, e fica furioso se me ponho a
chorar".
- Estás vendo este elegante jovem que entra numa bela e tranqüila
residência? Chama-se Duval, Dufor, Armando, Maurício, que sei
eu? Uma mulher decidiu-se a amar este perverso idiota: está morta;
certo é agora uma santa, no céu. Causarás a minha morte como ele
causou a dessa mulher. É nosso destino, o dos corações caridosos..,"
Ai! dias havia em que os homens afiguravam-se-lhe joguetes de
delírios grotescos; punham-se a rir horrivelmente, por muito tempo.
- Depois recuperava seus modos de jovem mãe, de irmã mais velha.
Se fosse menos selvagem, estaríamos salvos! Mas também sua
doçura é mortal. Estou submetida a ele. - Ah! Estou louca!".
"Um dia, talvez, desaparecerá maravilhosamente; mas preciso saber
se voará para algum céu, para que eu veja, ainda que por um pouco,
a assunção de meu amiguinho".
Que casal risível!

  Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, segundo á esquerda (20 de outubro de 1854, Charleville – 10 de novembro de 1891, Marselha) ao lado de Paul Verlaine

Delírios
II
Alquimia do Verbo
Para mim. A história de uma de minhas loucuras.
De há muito, eu me vangloriava de possuir todas as paisagens
possíveis, e achava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia
modernas.
Extasiava-me diante de pinturas idiotas; portais, decorações. telas de
saltimbancos, desenhos, estampas populares; literatura fora de moda,
latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossos
avós, contos de fadas, livros infantis, velhas óperas, ditados tolos,
ritmos ingênuos.
Sonhava cruzadas, viagens de descobertas, das quais não existem
noticias, repúblicas sem história, guerras de religião sufocadas,
revolução de costumes, deslocamento de raças e continentes:
acreditava em tudo quanto era encantamento.
Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul,
U verde. - Regulei a forma e o movimento de cada consoante, e me
vangloriei de inventar, com ritmos instintivos, um verbo poético
acessível, algum dia, a todos os sentidos. Eu me reservava a sua
tradução.
De início foi apenas um estudo. Escrevia os silêncios, as noites;
anotava o inexprimível. Fixava as vertigens.
***
Longe dos pássaros, dos rebanhos, dos camponeses,
Que bebia eu, joelhos em terra, naquela mata
Rodeada de ternos bosques de aveleiras,
Numa tênue e verde bruma, ao meio-dia?
Que podia beber neste jovem Oise,
-- Olmos sem voz, relva sem flores, céu aberto! -
Que podia beber nessas amareladas cabaças, longe. de
[minha choupana
Querida? Um licor de ouro que faz transpirar?
Eu era como um torpe emblema de hospedaria.
-- Uma tempestade desterrou o céu. Dentro da noite
A água dos bosques perdia-se entre as areias virgens,
O vento de Deus lançava pedras de gelo sobre os
[charcos;
Soluçando, eu contemplava ouro - e não pude beber.
***
Às quatro da manhã, no verão,
O amoroso cansaço dura ainda.
Sob os pequenos bosques se evola
O perfume da noite de festa.
Ao longe, na ampla oficina,
Ao sol das Hespérides,
Já se agitam - em mangas de camisa -
Os Carpinteiros.
Em seus Desertos de musgo, tranqüilos,
Trabalham preciosos lambris
Nos quais a cidade.
Pintará falsos céus.
Oh, por estes Obreiros, encantadores
Súditos de um rei da Babilônia,
Abandona um instante, ó Vênus,
Os Amantes de alma coroada!
Ó Rainha dos Pastores,
Leva aos trabalhadores a aguardente
Que lhes retempere as forças
***
A velha poesia tinha boa parte na minha alquimia do verbo.
Habituei-me à alucinação simples: via com toda a sinceridade uma
mesquita em lugar de uma fábrica, uma escola d tambores com anjos
por discípulos, caleches nas estradas do céu, um salão no fundo de
um lago; os monstros, os mistérios; um título de vaudeville
provocava terrores a meus olhos.
Depois expliquei os meus sofismas mágicos com a alucinação das
palavras!
Acabei considerando sagrada a desordem de meu espírito. Ocioso,
vítima de acabrunhante febre, invejava a felicidade dos animais - as
lagartas, que representam a inocência dos limbos, as toupeiras, o
sono da virgindade!
Meu caráter azedava-se. Despedia-me do mundo numa espécie de
romances

continua... 

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