terça-feira, 27 de abril de 2010

o pó das coisas

Deu início à bagunça. Há tempos estava lá amontoada num canto. E saiu tanto pó, tanta coisa, que resolveu fuçar mais. Revirou tudo sem procurar nada. Encontrou história, de vida. Um agregado de lembranças, ali naquele mesmo lugar: o passado. Definitivamente não vivia tal tempo, estava sempre ausente no presente. Rememora tudo. Data e sobrenome. Vestimenta e expressão. Cor e palavra. Topou com a vitrola antiga. Empoeirada. Atchim. Como tantas outras coisas que deixou criar pó quando precisava apenas soprar. Avistou também um disco, aquele clássico Concierto. Deixou-se ouvir. Cada acorde. O primeiro foi direto no estômago, doeu. Percorreu veias, passou pelo coração e estacionou na memória. Ali reviveu momentos. Apoiou levemente a cabeça no sofá vermelho, desses já furados por netos e gatos. O compacto seguiu baixinho nas paredes da casa de silêncio cômodo, possível ouvir o pulsar da agulha. Toca-dor a compartilhar espaço com móveis doutra época. Permitiu-se passear acompanhando cada volta negra, brilhosa. Movimentos circulares. Bons ares aqueles. Sorriu. Episódio engraçado aquele baile. Esticou corpo, avistou o mesmo sapato pisado no canto do quarto, repousando. Como agora o par descansava, em paz. A nota mudou e levou rápido à festa surpresa. Os amigos faziam perceber a velhice. Escolhas pretéritas suas. Roupas e decoração. E que poder aquela música tinha? Perdida entre todas as datas. Microscópicas. Lembrou daquele passeio que fez absolutamente nada o dia inteiro, o melhor. O que fizera dos dias, pó? Sentiu ferrugem corroer certas lembranças. Chorou. Deixou mesmo ir embora, não se despediu. Viu a criança nascer. Sorriu seu primeiro riso. E que poder de transportação o da trilha. Aquela tarde virou seis, sete, oito da noite. Vizinhos não ouviam nada, nunca. Naftalina. Tanta gente bonita ficar feia, tanta gente fraca tornar forte. No presente o tempo corre mais rápido. Tempo atrás nada era assim. Ah, o meu tempo de guerra pelo ideal. Saudade. Aprisiona-se no instante musical. Aquele seu piano cantou história. Não restara ninguém pra contar. Adormeceu no pó das coisas.

Neomisia Silvestre
suscitas.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário