terça-feira, 3 de agosto de 2010

O Barco Bêbado


O poeta, aventureiro e negociante de armas francês Arthur Rimbaud (1854-1891)

Quando eu já descia Rios impassíveis,
Não mais me senti preso a guias e galés:
Pels-vermelha a gritar os encrivaram, críveis,
Todos crus alvos nus nos totens de pincéis.
Em nada me importava quem eu carregara
Com o trigo flamengo ou o algodão inglês.
Como toda a zoada com os guias finara,
Rios me liberaram escolher fluxo e vez.
Nos clamores, ímãs e furor das marés,
Eu, inverno, mais surdo que mentes infantes,
Eu corri! E as Penínsulas, soltos os pés,
Nunca se descarnaram em caos mais triunfantes.
Tempestade bendisse minhas albas marinhas.
Bem mais leve que rolha eu dancei nos torós
Que se diz tornear norte das vitiminhas,
Dez noites, sem buscar o olhar dos faróis!
Mais doce que maçãs em boca de criança,
Água verde invadiu-me a carcaça de lei
E de vômito e vinhos azuis, gosma mansa
Me lavou, desprovido de leme e arpão, sei.
Desde então, é que eu mergulhei no Poema
Do Mar, infusão de astros, um lácteo mar,
Devorando os verde-anis; onde, clara gema,
Arrebatado, um corpo afunda a ensimesmar;
Onde, adensando azuis num só golpe, delírios
E ritmos lentos, rutilamento a se por,
Mais fortes que o álcool ou a lira que mire-os,
Fermentam os rubores amargos do amor!
Sei desses céus rasgando clarões e das trombas,
Das ressacas, correntes: do entardecer,
Da exaltada Alba, qual turba de pombas,
E já vi o que o homem pensou tido ver!

Vi o cadente sol, bolor de horror místico,
Com luz roxa de raio em feixes antigos,
Como atores de velho drama artístico
Ondas levando longe o tremor de postigos!
Sonhei com verde noite e deslumbrantes neves,
A beijar lentamente os olhos do mar,
Com a corrente de espantosas seivas leves,
Amarela alba azul de fósforo a cantar!
Assisti, mês a mês, como vaca em histerias,
À potência do mar recifes violentar,
Sem supor que os pés luminares de Marias
Focinhos de Oceanos pudessem assentar!
Tropecei, vós sabeis, em Flóridas incríveis
Mescla flor e olhos de pantera em pelo
De homens! Arcos-íris, rédeas invencíveis
No horizonte mar de rebanho amarelo!
Eu vi fermentarem nassas, mangues enormes
Onde apodrece em juncos todo um Leviatão!
Umas síncopes d’água em ares uniformes,
E lonjura em cataratas de furacão!
Gelos, sóis prata, ondas nácar, céus em brasa!
E profundos naufrágios em golfos de breu
Onde grandes serpentes que percevejo arrasa
Caem, de torto lenho, em negror que fedeu!
Eu queria expor às crianças o ouro
De onda azul, áureos peixes, peixes que cantam.
- No embalo do buquê de espumas em coro,
Inefáveis ventos meu corpo levantam.
Às vezes, mártir tonto dos pólos e zonas,
Soluço do mar me fazia fedelho,
Jogava-me flores carvão e amarelonas
E eu me mantinha fêmea de joelhos...
Pré-ilha, rebocando lamentos, ruídos
E fezes de gralhas com olhos cor de dentes.
E eu já vagueava, e em meus fios puídos
Afogados vinham, marcha a ré, dormentes!

Pois eu, barco entre pêlos, perdido nas ansas,
Que o furacão lançou num ar sem ave ou vôo,
De quem os Monitores, veleiros das Hansas
Não pescariam o casco que a água embriagou;
Livre, entre fumos, sob brumas violetas,
Eu que rasgava céu rubro de murado
Que contém, raro glacê dos bons poetas,
Uns líquenes de sol e muco azulado,
Que corri, manchado por luar elétrico,
Prancha louca, entre alas de hipocampos breu,
Quando os julhos faziam lascar-se tétrico
Em ardentes funis o ultramar do céu;
Eu que tremia, ouvindo a cinqüenta léguas
O cio de Behemots e Maelstroms eretos,
Fiandeiro eterno de azuladas tréguas,
Evoco da Europa os velhos parapetos!
Eu vi arquipélagos astrais! e vi ilhas
Cujos céus delirantes se abrem ao que for:
- Esse é o negror sem fim onde dormes, te empilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? -
Ah, sim, muito chorei! Pungentes são Albores.
Toda lua é atroz e todo sol é sal:
O acre amor me inflou de álcool e torpores.
Que esta quilha exploda! Seja mar afinal!
Se eu desejo água de Europa, é sarjeta
Negra e fria onde, ocaso em bálsamo de ensaio,
Um menino agachado, em só tristeza, meta
Um barco que trema qual borboleta em maio.
Não posso mais, no langor de vocês, marolas,
Me juntar a esses barcos que carregam algodões,
Nem traspassar poder, flâmulas, bandeirolas,
Nem vagar sob o olhar horrível dos pontões.
(O Barco Bêbado - Arthur Rimbaud)

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