sexta-feira, 23 de abril de 2010

Uma Temporada no Inferno - Rimbaud

Arthur Rimbaud

Foi viajando no som dos The Doors, ainda meio garoto e interessado em toda aquela literatura em torno das letras místicas de Jim Morrison, que acabei por esbarrar, entre outros vários, com o maior dos poetas. Arthur Rimbaud, responsável por inaugurar a poesia simbolista do século XIX, o primeiro movimento literário propriamente modernista que se tem registro. Entretanto, não há muito que eu possa acrescentar aqui que já não foi dito, escrito e revisado.
Considerado um dos mais surpreendente gênios precoces da literatura, Rimbaud foi, acima de tudo, um talento rebelde contra o conservadorismo de sua época, renegou a religião, os modelos sociais burgueses, a linguagem poética vigente, e por fim a própria atividade artística. Aos 20 anos iniciou um silêncio emblemático que duraria toda sua vida.
Publicarei “Uma Temporada no Inferno” de 1873, pioneira prosa simbolista, dividida em três partes.

Uma Temporada no Inferno
( Une Saison en Enfer)-Arthur Rimbaud
Tradução de Paulo Hecker Filho

Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os
corações exultavam, no qual corriam todos os vinhos.
Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos. - E achei-a amarga. - E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras. ó miséria, ó ódio, a vós é que foi confiado o meu tesouro!
Tudo fiz para que se desvanecesse em meu espírito a esperança humana.
Como um animal feroz, investi cegamente contra a alegria para estrangulá-la
Conjurei os verdugos para morder, na minha agonia, a culatra de seus fuzis.
Conjurei as pragas, para afogar-me na areia, no sangue. Fiz da desgraça a
minha divindade. Refocilei na lama. Enxuguei-me ao ar do crime. E preguei
boas peças à loucura.
E a primavera trouxe-me o horrível gargalhar do idiota. Ora, por último,
chegando a ponto de quase fazer o trejeito final, sonhei encontrar a chave do
festim antigo, no qual talvez recobraria o apetite.
A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova que tenho sonhado!
"Sempre serás hiena, etc..." exclama o demônio que me coroou de tão amáveis
papoulas. "Vence a morte com todos os teus apetites, com todo o teu egoísmo
e todos os pecados capitais".
Ah! estou farto de tudo isso: - Mas, querido Satã, eu te conjuro a que não me
fites com pupila tão irritada! e à espera das pequenas covardias atrasadas, para
vós outros que admirais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou
pedagógicas, para vós arranco algumas hediondas páginas do meu caderno de
condenado.
Mau Sangue
Herdo de meus antepassados, os gauleses, os olhos azuis-claros, a
fronte estreita, e a falta de jeito para a luta. Sinto que minhas roupas
são tão bárbaras quanto as deles. Apenas não unto a cabeleira.
Os Gauleses foram esfoladores de animais, queimadores de ervas, os
mais inábeis de seu tempo.
Deles, eu herdo: a idolatria e o amor ao sacrilégio; - oh! todos os
vícios: cólera, luxúria, - magnífica, a luxúria; - sobretudo mentira e
preguiça.
Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios,
ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. -
Que século de mãos! - Jamais me servirei das mãos! Depois, a
domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade
exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a
mim, estou intacto, e pouco se me dá.
Mas quem fez tão pérfida a minha língua que, até agora, tem guiado
e protegido a minha preguiça? Sem saber utilizar-me do corpo, e
mais ocioso que um sapo, tenho vivido por toda a parte. Não há
família na Europa que eu não conheça: - Estou falando de famílias
iguais à minha, que devem tudo à declaração dos Direitos do
Homem – Tenho conhecido cada filho-família!
***
Se possuísse antecedentes em um ponto qualquer da história de
França!
Mas não, nada.
Não ignoro que fui sempre de raça inferior. Não posso compreender
a revolta. Minha raça só se rebelará para saquear: como os lobos ao
animal que não mataram.
Recordo a história de França, filha primogênita da Igreja. Aldeão,
teria empreendido viagem à Terra Santa; vejo em pensamento
caminhos nas planícies suábias, panoramas de Bizâncio, muralhas de
Jerusalém: o culto de Maria, o enternecimento para com o
crucificado despertam em mim entre mil fantasias profanas. - Estou
sentado, leproso, sobre cacos de vasos e urtigas, junto a um muro
roído pelo sol. – Mais tarde, lansquenete, bivacaria sob as noites de
Alemanha.
Ah! mais ainda: danço o sabá numa incendiada clareira, com velhas
e crianças.
Minhas lembranças detêm-se nessa terra e no cristianismo. Ver-meei
sempre nesse passado. Mas sempre sozinho; sem família; e, além
disso, que língua falarei? jamais me surpreendo nos concílios de
Cristo ou nos concílios dos Senhores, - representantes de Cristo.
Que era eu no século passado: só hoje torno a encontrar-me.
Acabaram-se os vagabundos, nada de guerras sem sentido. A raça
inferior cobriu tudo - o povo, como se diz, a razão; a nação, e a
ciência.
Oh! A ciência! Tudo se repete. Para o corpo e para a alma, - o
viático - temos a medicina e a filosofia, - os remédios das boas
mulheres e as canções populares apropriadas. E as distrações dos
príncipes e os jogos que eles interditam! Geografia, cosmografia,
mecânica, química ...
A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha. Por que
não havia de girar?
É a visão dos números. Vamos pata o Espírito. É certíssimo, este
oráculo, que eu faço. Compreendo, e não sabendo explicar-me sem
palavras pagãs, preferiria silenciar.
***
Retorna o sangue pagão! O Espírito está próximo; por que Cristo
não me ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o
Evangelho morreu. O Evangelho! O Evangelho.
Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Estou na praia armoricana. Que as cidades se iluminem à noite.
Minha jornada está realizada; abandono a Europa. A aragem
marinha queimar-me-á os pulmões; os climas perdidos tostar-me-ão.
Nadar, mordiscar ervas, caçar, fumar, sobretudo; beber licores fortes
como chumbo derretido, - qual faziam esses queridos antepassados
em volta do fogo
Retornarei com membros de aço, negra a epiderme, as pupilas
acesas: por minha máscara julgar-me-ão de um raça forte. Possuirei
ouro: serei ocioso e brutal. As mulheres cuidam destes ferozes
enfermos que regressam dos países quentes. Participarei dos
negócios políticos. Salvo.
Agora estou amaldiçoado, horroriza-me a pátria. O melhor é um
sono, completamente bêbado, na praia.
***
Ninguém parte. – Percorramos novamente os caminhos daqui,
carregado de meu vício que aprofundou sua raízes de sofrimento a
meu lado, desde a idade da razão, - que sobe ao céu, me golpeia,
derruba, arrasta.
A derradeira inocência e a derradeira timidez. Está dito. Não
entregar ao mundo meus desgostos e minhas traições.
Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.
A quem me alugar? Que besta é preciso adorar? Que santa imagem
atacar? Que corações destruirei? Que mentira devo sustentar? Sobre
que sangue caminhar?
Mas, é melhor evitar a justiça. – A vida dura, o simples
embrutecimento, - levantar, o punho seco, a tampa do caixão, sentar-se,
afogar. Assim desaparecem a velhice e os perigos: o terror não é
francês.
Ah! Sinto-me tão abandonado que estou oferecendo a qualquer
divina imagem – impulsos para a perfeição.
Ó minha abnegação, ó maravilhosa caridade! aqui em baixo,
embora!
De profundis, Domine, que estúpido sou!
***
Menino, eu admirava o presidiário intratável sobre quem se fecha
sempre a porta da prisão; visitava os albergues e as pousadas que ele
havia santificado com sua passagem; via com sua idéia o céu azul e
o trabalho florido do campo; pressentia sua fatalidade nas cidades.
Era mais forte que um santo, tinha mais bom-senso que um viajante,
- e ele, só ele! Como testemunho de sua glória e de sua razão.
Nas estradas, nas noites de inverno, sem teto, sem roupa, sem pão,
uma voz oprimia meu coração gelado: "Fraqueza ou força: repara, é
a força. Não sabes para onde vais, nem porque vais, entra por toda a
parte, responde a tudo. Não lograrão matar-te a menos que já sejas
um cadáver". Pela manhã tinha o olhar tão perdido e o aspecto tão
morto, que aqueles que me encontravam possivelmente não me
viam.
Nas cidades, a lama parecia-me de súbito vermelha e negra, como
um espelho quando a lâmpada circula na peça contígua, como um
tesouro na floresta! Boa sorte, exclamava eu, e via um mar de
labaredas e fumaça no céu, e, à esquerda, à direita, todas as riquezas
ardendo como um milhar de relâmpagos.
Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me estavam proibidas.
Nem ao menos um companheiro. Via-me diante de uma multidão
exasperada, em frente ao pelotão de fuzilamento, chorando a
desgraça de que não houvessem podido compreender, e perdoando!
– Como Joana d'Arc! - "Sacerdotes, professores, mestres, vós vos
enganais entregando-me à Justiça. Jamais pertenci a este povo daqui
de baixo; jamais fui cristão; eu pertenço à raça que cantava no
suplício; não compreendo as leis; não tenho senso moral; sou um
bruto: vós vos enganais".
Sim, tenho os olhos cerrados para a vossa luz. Sou uma, um negro.
Contudo posso salvar-me. Vós sois falsos negros; vós, maníacos,
ferozes, avarentos. Mercador, tu és negro; magistrado, tu és negro;
general, tu és negro; imperador, velho prurido, tu és negro; tu
bebeste um licor não selado, da fábrica de Satã. – Este povo está
inspirado pela febre e pelo câncer. Mutilados e velhos são de tal
modo respeitáveis que pedem que os cozinhem. – O mais sábio é
abandonar este continente, onde ronda a loucura para prover de
reféns estes miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Can.
Conheço ao menos a natureza? Conheço-me a mim próprio? – Basta
de palavras. Sepulto os mortos em meu ventre. Gritos, tambor,
dança, dança, dança, dança! Nem sequer considero que ao
desembarcarem os brancos, cairei no nada.
Fome sede, grito, dança, dança, dança, dança!
***
Os brancos desembarcam. O canhão! É preciso submeter-se ao
batismo, vestir-se, trabalhar.
Recebi no coração o toque da graça. Ah! Não o havia previsto!
Nunca pratiquei o mal. Os dias vão ser suaves, apagar-se-me-á o
remorso. Não terei suportado os tormentos da alma quase morta para
o bem, onde sobe a luz severa como os círios fúnebres. A sorte do
filho-família, esquife prematuro coberto de límpidas lágrimas. Certo,
a libertinagem é estúpida, o vício é estúpido; é preciso arrojar
distante a podridão. Mas o relógio nunca dará unicamente as horas
de dor! Vou ser raptado qual uma criança, para brincar no paraíso,
esquecido de todas as desgraças?
Depressa! há outras vidas? - O sono em meio às riquezas é
impossível. A riqueza foi sempre bem público. Só o amor divino
outorga as chaves da ciência. Vejo que a natureza não é senão um
espetáculo de bondade. Adeus quimeras, ideais, erros!
O canto razoável dos amigos eleva-se do navio salvador: é o amor
divino. - Dois amores! Posso morrer de amor terrestre, morrer de
sacrifício. Deixei almas cuja pena crescerá com minha partida!
Escolheste-me entre náufragos; os que ficam são meus amigos?
Salvei-os!
Despertou-me a razão. O mundo é bom. Abençoarei a vida. Amarei
meus irmãos. Não são promessas infantis. Nem esperança de escapar
à velhice e à morte. Deus me dá força e eu louvo a Deus.
***
O tédio já não é o meu amor. As cóleras, a libertinagem, a loucura, -
dos quais conheço todos os impulsos e todas as conseqüências - todo
o meu fardo está deposto. Apreciemos sem vertigem a extensão de
minha inocência.
Já não serei capaz de implorar o consolo de uma bastonada. Não me
acredito a caminha de umas núpcias com Jesus Cristo por sogro.
Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade
na salvação: como alcançá-la? Os gostos fúteis abandonaram-me. Já
não preciso de sacrifícios nem de amor divino. Não tenho saudades
do século dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo
e caridade: retenho meu lugar no alto desta angélica escala de bomsenso.
Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não
posso. Estou demasiado gasto, demasiado débil. A vida floresce pelo
trabalho, velha verdade: quanto a mim, minha vida não é
suficientemente pesada, voa e flutua distante, por cima da ação, esse
adorado eixo do mundo.
Como me sinto solteirona, falto de coragem para amar a morte.
Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a oração, - como os
antigos santos -. Os santos! os fortes! os anacoretas, os artistas tais
quais já não precisamos.
Farsa contínua.! Minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa
que todos têm que representar.
***
Basta! eis a punição. - Em marcha!
Ah! queimam os pulmões, latejam as têmporas! A noite tomba em
meus olhos, em pleno sol! O coração... os membros...
Aonde vamos? ao combate? Sou fraco! os outros avançam. Os
ferros, as armas... o tempo !...
Fogo! Fogo sobre mim! Lá! para onde me dirijo. - Covardes - Matome!
Arrojo-me entre as patas dos cavalos!
- Habituar-me-ei a isso.
Esta seria a vida francesa, o caminho da honra!


continua...


Nenhum comentário:

Postar um comentário